Brasil, brasis

Por Fernando Mascarenhas.

Esta semana foi de agenda cheia, com dois compromissos prá lá de diferentes. Na segunda, 8/4, estava no Rio de Janeiro, onde acompanhei o Fórum Internacional sobre Economia do Esporte. E de terça a sexta, 9 a 12/4, fui para Florianópolis, onde participei das IX Jornadas Bolivarianas. Um e outro evento, ao seu modo e segundo sua orientação, abordou os megaeventos esportivos, com seus impactos na economia.   

O Fórum foi organizado pela FGV Management, um braço da FGV voltado à certificação e formação empresarial através de cursos - principalmente os MBAs -  para atender a demanda do mercado. 

Tá certo que as demandas relativas aos negócios com o esporte colocadas para à FGV não vêm do mercado, mas sim do Estado. Não bastasse a consultoria realizada à época da candidatura Rio 2016 ou da consultoria contratada para o monitoramento das obras da Copa, bem como das suspeições levantadas pelo TCU, o Ministério do Esporte segue contratando a FGV para todo tipo de consultoria, e sem licitação. Não é de hoje que as pesquisas e os dados fornecidos pela instituição servem ao Ministério e seu pessoal, legitimando suas ações e não-ações.    

Mas é isso aí, sob o pretexto de que o esporte é um bom negócio, estão agora querendo vender um MBA em Gestão Estratégica de Esportes, e por isso organizaram o Fórum. 

Fiquei sabendo do Fórum a partir da dica de meu amigo Sílvio, do GEFuT-UFMG. "Meu irmão, vai lá tomar um café com os caras!". O coffee não vi, cheguei atrasado - a mobilidade no Rio é um problema -, mas vi os caras... Estavam lá os representantes do Estado, do mercado e das coorporações esportivas, o bloco olímpico reunido.

Já as Jornadas foram organizadas pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos - IELA, uma rede de pesquisa multidisciplinar e de relações horizontais movida por um interesse comum: a América Latina livre, soberana e unida.

Em sua nona edição, depois de ter pautado temas como o nacionalismo, o imperialismo, a cultura e o pensamento crítico em nossa Latinoamérica, este ano, as Jornadas chamaram para si o debate sobre o esporte e os megaeventos esportivos, avaliando que Copa de 2014 e Jogos de 2016, ao se realizarem no Brasil, trarão desafios e implicações culturais para todo o continente.
Para as Jornadas, fui convidado pelo amigo Paulo Capela, presidente do IELA e líder do grupo Vitral Latino-Americano de Educação Física, Esportes e Saúde, com a tarefa de problematizar o tema "O Estado, os Movimentos Sociais, as Políticas Públicas de Esporte e Lazer e os Direitos Sociais frente aos Megaeventos Esportivos".

Diante de um público diverso, tive uma excelente oportunidade de construir o diálogo sobre os megaeventos e a necessidade de Defesa do Direito Social inalienável de acesso ao universo das Práticas Corporais com estudantes e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e países, isto sem falar de representantes de um amplo espectro de organizações estudantis, sindicatos e movimentos sociais.

No Fórum, que aconteceu no Centro de Convenções SulAmérica-[seguros], tinham por volta de 500 pessoas, em sua maioria, de gente ligada ao campo esportivo. Além de palestras motivacionais não faltaram sorteios de bolas oficiais de futebol da Nike e kits promocionais do COB.

O ministro do Esporte não foi, mandou representante. No mesmo dia, pela noite, apareceria com agasalho do COB e da Nike em entrevista no Roda Viva. O Blog do Juca não perdoou, tratou de estampar a foto do camarada-propaganda. O ex-presidente da CPI CBF-Nike vestiu o agasalho mas, pelo menos desta vez, não teve de passar o ridículo de sortear bolas da empresa. Mas quem viver verá, é só uma questão de tempo e oportunidade.

Oportunidade, aliás, era palavra mágica na boca dos convidados, o mais ilustre deles, Sr. Jerôme Champagne, o todo poderoso ex-Secretário de Relações Internacionais da FIFA, homem de confiança de Joseph Blatter. Falou bem do ex-patrão, fez a autocrítica do eurocentrismo do futebol e defendeu a participação do Estado na organização da Copa, mas não foi além do que já havia falado ao portal Terra, em entrevista de outubro do ano passado. Para a FGV valeu, pois colar sua imagem ao know-how e expertise de consultores identificados com experiências de "sucesso", no plano simbólico, é sinal de afirmação e competência.

De modo geral o discurso foi de entusiasmo, passando pela fala da ex-atleta do vôlei de praia,  Adriana Behar, hoje funcionária do Nuzman no COB, que apresentou o mapa estratégico da entidade, ou do executivo  José Carlos Pinto, sócio da empresa de consultoria Ernest & Young, responsável por um estudo que projeta a injeção de R$ 142 bilhões na economia brasileira até 2014.

Nas Jornadas, que aconteceram no Auditório da Reitoria da UFSC, o público foi um pouco menor, perto de 400 pessoas, como já disse, bastante heterogêneo, em maioria, ligado à economia e serviço social, dada a vinculação do IELA com o Centro Socioeconômico daquela universidade.

Por lá não teve sorteio, pois a motivação era de outra ordem, construir as armas da crítica. O IELA se dedica a formulação e disseminação de análises teóricas críticas, voltadas para a superação dos elementos estruturais que perpetuam a dependência e o subdesenvolvimento no nosso continente. E foi a partir desta ótica de análise que os megaeventos foram objeto das Jornadas.

Com certeza, o ponto alto do evento foi o debate com Juca Kfouri, um dos poucos jornalistas dissonantes da engenharia do consenso produzida pela grande mídia em torno da Copa e dos Jogos, quebrando o silêncio sobre as arbitrariedades, abusos e violações praticadas em nome dos megaeventos esportivos.  

O caráter internacional das Jornadas, menos que pelos convidados, vem do objetivo de refletir sobre nuestra América, buscando construir sua transformação. E por isso foi também convidado ao debate o sul-africano Eddie Cottle, coordenador político do Building and Wood Workers' International - BWI e autor do livro South Africa’s World Cup: A Legacy for Whom?

A experiência da África do Sul nos ensinou que as perspectivas de crescimento anunciadas para o país não passaram de retórica, pois o aumento dos números de emprego e do turismo, principais as promessas de legado, nunca vieram.

Vários outros convidados de Cuba, Equador, México, Uruguai, além do próprio Brasil, enriqueceram a discussão. Mas foi a partir da exposição de Renato Cosentino, do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, detalhando como avançam as violações de direitos no Rio em nome do progresso e do desenvolvimento - leia-se, do empresariamento da cidade -, que pudemos dimensionar melhor o temanho dos problemas.

O fato é que a chamada Cidade Olímpica, como diria o urbanista Carlos Vainer, é uma cidade que se divide em duas... A cidade global - amigável ao mercado (market friendly) e orientada pelo e para o mercado (market oriented) - e a cidade de exceção - a cidade das decisões ad hoc, das isenções, das autorizações especiais, do choque de ordem e dos muros, uma cidade estranha aos "de baixo".

Estas são as duas faces de um mesmo projeto.
Brasil, brasis...

Agradeço a todos os organizadores e participantes das Jornadas pela oportunidade do debate. 

Desde el sur, viva el IELA!

O TROTE NÃO PODE SER TOLERADO

(DIÁRIO CATARINENSE, 26.III.2013 - ANO 27, N. 9853, P. 10) 
Alexandre Fernandez Vaz (Professor da UFSC; Pesquisador do CNPq)
 
Começa um novo semestre letivo na UFSC e ruas e avenidas que contornam o campus veem surgir um costumeiro personagem:  o calouro sofrendo trote. São rapazes e moças que, imundos, esmolam de carro em carro no tremendo engarrafamento, estado permanente do trânsito local. Com frequência, estão sob o olhar de algum "veterano" a fiscalizar a coleta das moedas que depois devem financiar, segundo se supõe, a bebedeira de colegas mais velhos. 
 
A vigilância se transforma em documentação: celulares a postos, tudo deve ser registrado para logo ser divulgado em redes sociais. 
 
Prática que remete ao mundo medieval, o trote é um rito de passagem sadomasoquista, como bem o chamou Antonio Zuin, da UFSCar. Não deixa de ser surpreendente sua prevalência no ambiente universitário, em que a reflexão deve prevalecer, mas onde parece haver um sentimento de vingança contra os corpos dos recém-chegados: eles devem sentir desconforto e dor, andar descalços, ter o rosto e as roupas sujas e arruinadas pela tinta, pagando com sua "alegre" humilhação o afeto dos que já cursam a universidade. Vingança contra outras práticas de rebaixamento que são impostas aos estudantes em sala de aula?   
 
O trote não é exclusividade da UFSC, mas prática bárbara espalhada pelo Brasil em versões mais ou menos ferozes. Mesmo em suas formas mais "brandas" ou "politicamente corretas", mantém-se como dinâmica regressiva ao diminuir o outro a mero objeto para sabe-se lá que tipo de deleite. Correspondente à indústria do entretenimento, que sugere o gozo a partir do sofrimento próprio e alheio, o trote tem que ser criticado no contexto de uma sociedade que valoriza a dor como espetáculo. É por isso que não pode ser tolerado.